A 6ª Festa Literária Internacional de Paraty, também conhecida como FLIP, manteve seu foco nas mais diversas manifestações literárias presentes em outras artes e ciências, como o cinema, os quadrinhos ou a psicanálise. Dessa necessidade de interpretação dos mecanismos de composição da literatura e sua expressão em outras formas que não os livros, surgiu também o interesse em pôr em debate o quanto todas as artes se interferem simultaneamente. Porém, não houve dúvida a qualquer um dos autores em concordar que o cinema tem sido, como fenômeno de massa, a mais expressiva delas.
No sábado, dia 05, a argentina Lucrecia Martel promoveu uma sessão única e exclusiva (até aquele dia, e provavelmente até agora, o filme havia sido exibido apenas em Cannes) de seu último longa-metragem, La Mujer sin Cabeza, provando o porquê de ela ter sido convidada para representar o cinema numa feira literária. Cento e sessenta lugares foram disputados pelos participantes, o que gerou uma série de conflitos com a organização do evento e obrigou Lucrecia a exibi-lo novamente no dia seguinte.

La misma

Seu primeiro longa-metragem, O Pântano, foi aclamado em festivais na Argentina, Havana e Berlim. Propondo uma estética abafada e desconfortante, o filme inaugura a temática de Lucrecia que se volta para a classe média argentina decadente. A desconstrução familiar, o toque reprimido, a ausência de trilha e o anacronismo compõem o alicerce narrativo permitindo o enlaçamento aparentemente sem propósito dos fatos em uma trama fria, vazia, incomunicável, repleta de elementos e de uma sensação de iminência, de algo que está sempre por vir.
Para Lucrecia, qualquer análise meramente simbológica de seus filmes exclui um sem número de possibilidades e leituras; os símbolos são facilmente decodificáveis e permitem ao espectador acessar rapidamente o conteúdo. Contudo, eles generalizam situações, criam paradigmas e tornam-se maneirismos e cacoetes de linguagem; enquanto uma estrutura por camadas – a qual a própria diretora defende –, relaciona elementos secundários ao primeiro plano, atribuindo relevância para alguns signos supostamente deslocados e pouco interessantes.
Essa opção estética é reutilizada em A Menina Santa, 2004, acusado imediatamente de reciclar a fórmula sem, no entanto, atingir o mesmo êxito. Ainda assim, A Menina Santa possui uma grandiosidade narrativa tão intensa – talvez mais - quanto a de O Pântano. O reaproveitamento de elementos permite que se trabalhe comparativamente os dois filmes para, enfim, encontrar grande parte da estética e dos esquemas propostos por Lucrecia: não centralização em um único personagem, religiosidade, piscinas (repugnadas por ela), espaços fragmentados, valorização das figuras femininas e um desfecho no clímax a partir de uma cena reveladora que, ao mesmo tempo, não se encerra.

La outra

De calça jeans, óculos e blusa preta, meio tímida, meio sem jeito, Lucrecia Martel abre a sessão de La Mujer sin Cabeza falando em espanhol, pede desculpas pelas legendas estarem em inglês e nos diz que não voltará ao final do filme para debatê-lo, mas que isso aconteceria no dia seguinte em uma rua qualquer de Paraty.
Nos primeiros quinze minutos muito da antiga Lucrecia já não está ali. A começar pelo plano médio no carro, que fixa a câmera em Verónica, enquanto ela dirige por uma estrada de terra. Então se vê, de dentro do carro, uma batida, um choque que deslocará Verônica para além do simples impacto, da causa e da conseqüência; transporta-a para um outro estado de consciência, inerte, transtornante. Verónica não consegue identificar aquilo que atropelou, e por mais que Lucrecia nos permita que vejamos, honestamente, passamos a duvidar. Pode ser um cachorro, um rapaz, ou qualquer outra coisa. A continuidade mostrará que isso tampouco importa.
Numa atmosfera semelhante ao insólito de David Lynch, onde nunca se sabe quais os limites do real, Verónica passa a viver num estado de semi-consciência, como se estivesse constantemente naquela sensação pós-trauma, naqueles segundos em que não se há reação, entre o delírio e a lucidez.
Lucrecia apresenta seu universo desconstruído na profusão de novos elementos: a presença constante de Verónica em todos os planos, abandonando a pluralização de personagens; a recorrência de planos fixos dentro do automóvel, em detrimento dos espaços físicos utilizados anteriormente; a inserção de personagens duais, híbridos entre a lucidez e o real, sintetizando o universo de Verónica, mas suscitando dúvidas quanto a existência e, finalmente, o inconsciente apresentado de maneira muito mais profunda e complexa.
Na utilização de uma fotografia simples - ao manter em diversas cenas o segundo plano desfocado intensificando a presença das personagens no primeiro plano, elevando, assim, a sensibilidade e o torpor – e na atuação singular de Maria Onetto, Lucrecia reconsidera a decadência da classe média argentina a partir das desorientações de Verónica, de sua relação conjugal fracassada, da indiferença com a filha, e na aparente fuga para a o prazer através do amante.
La Mujer sin Cabeza confirma o amadurecimento de Lucrecia Martel ao sorver o melhor de suas narrativas anteriores, eliminando os recursos desgastados, inserindo novas estruturas, transitando por espaços que deixam a escala social e atingem o inconsciente e, ainda assim, reutilizando características – como as piscinas, a ausência de trilha sonora – que tornaram seu cinema tão característico e peculiar.
Como em romances modernos, a personagem parece viver em fluxo de consciência, nos acontecimentos aparentemente imaginários, e isso faz Lucrecia uma representante desse cinema que está tão arraigado às estruturas literárias. Embora ela afirme que o realismo fantástico latino-americano a tenha influenciado menos que os westerns, é inegável que as narrativas fantásticas do norte da Argentina, como Horacio Quiroga, estejam presentes em sua obra; os elementos fantásticos dessas narrativas são dispostos de forma a parecerem fatos cotidianos. Em seus filmes, Lucrecia domina essa técnica ao transformar o absurdo de maneira que não assombre ou duvide, ainda que perturbe.
As críticas iniciais ao filme de Lucrecia, vaiado no festival de Cannes, giraram todas em torno da premissa “não chega a lugar algum”. Como se, de alguma forma, o cinema tivesse que chegar a qualquer lugar. La Mujer sin Cabeza está mais interessado em examinar os espaços recônditos da mente humana e as fragilidades sociais do que se encerrar em simbologias. O contrário: Lucrecia sugere sempre algo que está prestes a acontecer... e nunca acontece.